Um ano após a tragédia que matou 242 pessoas na boate Kiss e escancarou as condições precárias das casas noturnas brasileiras, ISTOÉ visita baladas do eixo Rio-São Paulo e constata que elas continuam perigosamente inseguras
Mariana Brugger, Raul Montenegro, Simone Felício e Wilson Aquino
Depois que passa, a gente se dá conta do absurdo que é um jovem entrar num buraco daqueles e sair morto”, diz Elaine Gonçalves, que há um ano perdeu dois filhos no incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS). No dia 27 de janeiro de 2013, depois de um dia de calor intenso no interior gaúcho, 242 pessoas morreram na tragédia que escancarou ao País as condições precárias das casas noturnas brasileiras. Na época, muitas promessas foram feitas – com estabelecimentos e autoridades de todas as esferas se comprometendo a endurecer medidas de combate ao fogo no território nacional. Um ano depois, porém, quase nada saiu do papel e muitos dos “buracos” continuam funcionando sem condições mínimas de proteção. Em um deles, visitado por ISTOÉ, uma pessoa pode se deparar com uma parede de tijolos ao abrir a porta de emergência que deveria levá-la ao lado de fora.
HORROR
27 de janeiro de 2013: pânico em Santa Maria na madrugada
da tragédia. Um ano depois, ninguém foi punido
27 de janeiro de 2013: pânico em Santa Maria na madrugada
da tragédia. Um ano depois, ninguém foi punido
A imagem que beira o surreal pode ser vista numa casa de shows
localizada entre os bairros de Pinheiros e Vila Madalena, dois dos mais
badalados de São Paulo. A reportagem foi a boates da capital paulista e
do Rio de Janeiro na semana passada para verificar as condições de
segurança das baladas, o que já havia feito no ano passado, e constatou
que pouca coisa mudou.
Naquela madrugada de domingo em Santa Maria, a existência de uma
única saída foi uma das causas apontadas por especialistas para o número
de mortes. A maioria das casas noturnas visitadas possui problemas nas
saídas de emergência. Na Ó do Borogodó, que emparedou um dos acessos à
rua, instrumentos musicais bloqueavam outra porta da casa. De acordo com
o proprietário Leonardo Gola, o prédio possui outros dois acessos que
são suficientes. No pub Kia Ora, na zona oeste paulistana, uma delas
leva à cozinha, que, por sua vez, termina numa passagem trancada. No
Beco 203, na rua Augusta, centro de São Paulo, uma das saídas, ao lado
do fumódromo, estava fechada no dia da visita. Os frequentadores também
dariam com a cara na porta de emergência do Maavah, bar da zona leste
paulistana que toca música sertaneja e pagode. ISTOÉ não conseguiu
contato com Beco 203 e Maavah. O Kia Ora disse que um botão ao lado da
porta que dá para a rua, quando pressionado, libera a passagem. No Rio, o
caso mais grave foi o da 021 Club, na Barra, cuja entrada é cercada por
grades de metal fixas, empecilho invencível para sair do lugar em caso
de incêndio. Apesar das três saídas de emergência, não há sinalização,
aponta Vinicius Cavalcante, diretor da Associação Brasileira de
Profissionais de Segurança no Rio, que acompanhou a reportagem.
Procurada, a casa não se pronunciou. No centro carioca, o Pampa Grill
tinha mesas e uma porta de metal obstruindo saídas.
Edgar Vargas, gerente do local, reconheceu as falhas. A Casa da
Matriz, em Botafogo, chegou a ser fechada por dois dias no ano passado
devido a problema de alvará, mas se regularizou. Na quarta-feira 22,
entretanto, acontecia uma festa que tinha, na decoração, uma piscina de
plástico na saída. “Confesso que não sabia, mas vamos alertar as
produções”, afirma Léo Feijó, sócio. No inferno da Kiss, sobreviventes
relataram que muita gente foi parar no banheiro pensando se tratar de
uma rota de fuga. No Studio RJ, em Ipanema, há a mesma armadilha: a
porta do fumódromo, que leva a um cômodo fechado, parece uma saída de
incêndio. A boate não se pronunciou.
Outro problema grave é a lotação. Na boate Kiss, testemunhas
contaram que havia pelo menos mil pessoas no dia do incêndio, apesar de a
casa oficialmente comportar 691. Em São Paulo, num cartaz da balada
D.Edge, na zona oeste, está escrito que lá cabem 360 pessoas.
Funcionários ouvidos pela ISTOÉ, no entanto, afirmam que a boate recebe
até dois mil frequentadores. Na segunda-feira 20, a reportagem contou
entre 200 e 300 pessoas só no deque superior. Em nota, a D.Edge afirmou
que possui autorização para abrigar 609 frequentadores. Na Fosfobox, em
Copacabana, a placa afixada do lado de fora consta a capacidade de 100
pessoas, mas há muito mais gente do lado de dentro. Cabbet Araújo, dono,
explica: “Nossa licença permite 100 pessoas por pavimento.” Os
materiais também são item fundamental na segurança. Na tragédia do ano
passado, foi a espuma inflamável do teto que pegou fogo depois que o
vocalista da banda Gurizada Fandangueira acendeu um sinalizador durante o
show. Na The History, localizada na zona oeste paulistana, a reportagem
flagrou uma garrafa com vela que soltava faíscas, o que não é
recomendado pelos bombeiros – a administração afirmou que a chama não
oferece riscos. Na casa noturna Alberta #3, no centro de São Paulo, o
teto da pista de dança também é de espuma. A fiação e uma tomada
elétrica ficam próximas ao forro, mas a assessoria informa que o
material é antichamas. Já na carioca Rio Music, fios expostos e assentos
com espuma podem ajudar na propagação de incêndios. “Ainda existem
elementos de papel na decoração”, afirma Jaques Sherique, engenheiro
especializado em segurança e vice-presidente do Conselho Regional de
Engenharia e Agronomia do Rio (CREA-RJ), que percorreu endereços
noturnos com a ISTOÉ. Ulisses Xavier, sócio, informou que a casa já
passou pelo processo de adequação e está em dia com os bombeiros. “Um
grande problema é que esses produtos não são avaliados. Na área da saúde
você não vê remédios sendo vendidos sem teste” afirma José Carlos
Tomina, superintendente do Comitê Brasileiro de Segurança Contra
Incêndio da ABNT.
Muitas das casas do País funcionam sem alvará. Em São Paulo, segundo
a prefeitura, foram emitidas ou revalidadas 178 permissões para locais
com capacidade superior a 500 pessoas em 2013. Mais 224 estabelecimentos
estão abertos aguardando regularização. No Rio, 2.600 “casas de
diversão” foram vistoriadas pelo município. Desses, 825 foram autuados
por funcionarem sem alvará ou em desacordo com a documentação. Belo
Horizonte (MG) tem apenas 34 locais de shows completamente regulares,
dos 264 vistoriados em 2013. Entre os 201 estabelecimentos visitados em
Porto Alegre (RS), 98 possuíam licença e 71 estão fechados por falta de
documentação. Já em Salvador (BA), a prefeitura fiscalizou 64 casas
noturnas no ano passado – 20 foram interditadas, mas 12 já estão
funcionando. Estudiosos afirmam que há pouca gente para fazer a
fiscalização. Somente 14% dos municípios brasileiros têm Corpos de
Bombeiros, o principal parceiro das autoridades nesse trabalho.
Desde o caso Kiss, a legislação referente ao tema avançou um pouco. O
Rio Grande do Sul aprovou regras mais duras no ano passado, como uma
maior rigidez na obtenção de alvarás de prevenção contra incêndio, por
exemplo, mas elas vão demorar meses para sair do papel. Em Santa
Catarina, bombeiros lutam pelo poder de interditar imediatamente locais
que ofereçam riscos – o que já acontece no Rio. Tomina, da ABNT, diz que
é muito complicado não haver uma legislação nacional sobre o tema. “Os
Estados têm sua legislação própria. Isso é muito ruim porque não há um
padrão.” Depois do desastre de Santa Maria, a Câmara dos Deputados
começou a discutir um projeto de lei para sanar essa questão. A proposta
ficou pronta em julho, mas aguarda votação no plenário. O deputado
Paulo Pimenta (PT-RS), que coordenou uma comissão sobre o assunto na
Casa, afirma que a demora se deu por causa da análise de assuntos com
urgência constitucional – que têm prioridade – no ano passado. Para ele,
porém, é preciso aproveitar a retomada do interesse para votar a
matéria. “O Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, fez a
promessa de colocar em votação na primeira semana de fevereiro.”
Uma das promessas do projeto federal é responsabilizar agentes
públicos que não cumprirem suas obrigações de fiscalização. Um ano
depois da Kiss, esse é um dos pontos mais incômodos para os familiares
das vítimas. “Ficou um sentimento de impunidade”, afirma Helena Rosa da
Cruz, mãe de duas vítimas do incêndio. Processos de homicído correm
contra dois integrantes da banda e dois proprietários da boate, que
chegaram a ser presos, mas foram soltos meses depois. Outros dois
inquéritos, sobre poluição sonora e fraude no licenciamento, devem ser
concluídos em fevereiro. Para que outras famílias do País não sofram o
mesmo que as de Santa Maria, Tomina, da ABNT, diz que deve haver boas
regras, produtos de qualidade e fiscalização. “Temos 1.200 vítimas
fatais por causa de incêndios anualmente no Brasil. São cinco boates
Kiss todo ano.” É preciso dar um basta.
Fotos: Germano Roratto/Ag.
RBS/Folhapress; Masao Goto Filho, Kelsen Fernandes, Mariana Brugger –
Ag. IstoÉ, Masao Goto Filho, Kelsen Fernandes, Fernanda Ramos – Ag.
IstoÉ
Nenhum comentário:
Postar um comentário