Alguns dias atrás (11/04/13), repercutimos aqui um artigo sobre o efeito Dunning-Kruger,
que, no final, cita uma frase de Charles Darwin que abre o seu livro "A
Descendência do Homem":"a ignorância gera confiança com mais frequência
do que o conhecimento".
Já no
domingo, dia 21/04/13, reproduzimos aqui uma matéria do mesmo jornal
sobre o mais recente livro de Steven Pinker, "Os Anjos Bons da Nossa
Natureza", que também fala sobre a diminuição da violência humana ao longo dos milênios.
Naquele mesmo dia 21 de abril, a Folha de S. Paulo
trouxe uma resenha muito interessante de Carlos Alberto Dória sobre
essa mesma obra esquecida de Darwin, "A Descendência do Homem", baseada
na obra de Patrick Tort, "L'Effet Darwin: Séléction Naturelle et
Naissance de la Civilisation" (Seuil, 2008).
No meio de
tantas informações interessantes, não deixa de ser um tanto quanto,
digamos, "patrioticamente" constrangedor, perceber como o contato de
Darwin com o triste fenômeno da escravidão no Brasil do século XIX foi decisivo na formulação de seu pensamento.
Antropologia de Darwin: Os fundamentos materiais da moral
CARLOS ALBERTO DÓRIA
RESUMO "A
Descendência do Homem" (1871), de Charles Darwin, foi praticamente
ignorado em nome da ideia liberal de "guerra de todos contra todos".
Releituras e pesquisas recentes em torno do livro revelam uma verdadeira
teoria antropológica darwiniana que aponta para as raízes biológicas da
moral.
Um
dos casos mais intrigantes da epistemologia das ciências biólogicas é a
quase absoluta ignorância que se seguiu à publicação de "A Descendência
do Homem" (1871), de Charles Darwin.
Quase
ninguém se deu conta de que a obra encerrava uma revolução no
conhecimento, tão importante quanto "A Origem das Espécies" (1859).
Tão
certos estavam os seguidores e detratores de Darwin de que se tratava
de uma "continuação" ou "aplicação" da "Origem" à espécie humana,
contestando a natureza divina do homem, que nem se deram ao trabalho de
lê-la. Do mesmo modo, parte do trabalho --sobre o mecanismo da seleção
sexual-- foi considerado um ensaio independente, sem conexão com a
origem do homem. Passou em brancas nuvens esta que é considerada agora a
"segunda revolução darwiniana".
A
obra vale por não repetir argumentos da "Origem", constituindo uma
verdadeira antropologia na qual se fundem as dimensões biológica e
cultural, como nunca se vira antes e não se viu depois, pois as ciências
humanas se desenvolveram de costas para a biologia e a cultura foi
considerada algo além do mundo orgânico ("superorgânica") --isto é, a
vida simbólica já aparece como plenamente constituída.
Essa
antropologia só é possível porque Darwin não vê diferenças de natureza,
e sim de grau, naquilo que une o homem às demais espécies animais. As
habilidades, os instintos, a inteligência, a capacidade de comunicação
(linguagem), os comportamentos são caracteres animais difundidos por
infinitas espécies.
O
impacto político dessa antropologia é enorme. Ao "animalizar" o homem e
seus instintos mais "nobres", deixava a igreja falando sozinha, mesmo
sem haver pensado a obra como um libelo antideísta. O livro mostra que
os homens pertencem a uma espécie polimórfica, na qual todos são iguais,
e as diferenças secundárias, como a cor da pele, foram desenvolvidas ao
longo de milênios, através de escolhas estéticas de grupos humanos.
POLÍTICA
Mas
por que Darwin escreveu esse livro, se as ciências humanas não eram seu
foco de atenção? A razão foi de ordem política e humanitária, conforme
hoje se sabe, graças ao estudo dos biógrafos de Darwin sobre suas
anotações e diários (Adrian Desmond e James Moore, "Darwin's Sacred
Cause: Race, Slavery and the Quest for Human Origins", Penguin Books,
2009).
Quando
Darwin esteve no Brasil, horrorizou-se com a escravidão e, desde o
distante ano de 1837, começou a reunir elementos para provar a origem
comum e a igualdade entre os homens no plano biológico, de modo a
sepultar as principais teses dos escravistas, com destaque para a tese
da poligenia (tomando raças ou variedades como se fossem espécies
"criadas" independentemente, segundo sugeria a leitura que faziam da
Bíblia) com a qual "justificavam" o direito à escravizar seres
aparentemente distintos.
Do
ponto de vista historiográfico, a trajetória intelectual de Darwin
também é surpreendente: uma obra sobre o homem, provando sua igualdade
(monogenia), foi ideia anterior à concepção da seleção natural. Assim,
se o estudo sobre a origem das espécies favoreceu sua compreensão sobre a
animalidade do homem, ela contribuiu igualmente para o amadurecimento
de sua antropologia.
A
nova leitura esclarecedora de "A Descendência do Homem" deve-se ao
trabalho de quase 20 anos do epistemólogo francês Patrick Tort, cujo
livro "L'Effet Darwin: Séléction Naturelle et Naissance de la
Civilisation" (Seuil, 2008) é síntese dessa trajetória persistente.
A
primeira questão que Tort busca explicar é o desprezo pela antropologia
de Darwin. E sua explicação é relativamente simples: a ideia de "luta
pela vida" era extremamente conveniente para a economia política
liberal; reforçava a noção de luta de "todos contra todos" e triunfo dos
mais fortes, e os evolucionistas liberais, como Herbert Spencer, a ela
se aferraram.
"A
Descendência do Homem", ao contrário, é a obra na qual Darwin sofistica
os mecanismos de seleção --faz até um mea-culpa por haver exagerado o
papel da seleção natural-- introduzindo na história natural as noções
cruciais da cooperação e "altruísmo".
Contudo,
só nos países sem tradição de economia política liberal esses
mecanismos de evolução foram percebidos e valorizados, como na Rússia
czarista, resultando em algumas obras discrepantes em relação à
interpretação dominante, como a de Peter Kropotkin, "Ajuda mútua: Um
Fator de Evolução" (1888).
Em
"A Descendência do Homem", Darwin mostra como esse animal surge da
evolução de formas mais simples através da convergência fortuita de
vários processos: a pedestrialização (quando o animal desce das
árvores), o bipedismo, a encefalização (aumento do cérebro) e o
desenvolvimento da linguagem simbólica. Mas não foram só as
transformações físicas que Darwin captou. Ele indicou que, ao se
desenvolver no plano social, criou-se uma ruptura com o processo
anterior, no qual, por força de pressões ambientais, os animais se
adaptavam mediante a transformação física milenar.
O Homo sapiens
já não se transforma fisicamente, mas age sobre o ambiente, adaptando-o
às suas necessidades (produz vestimentas, habitação etc.). Do mesmo
modo, o instinto animal evolui e aprofunda seu caráter social, impondo
formas cooperativas, tornando-o um animal social bastante sofisticado,
capaz de várias ações altruístas.
Mas
por que o altruísmo? Não se trata da manifestação de uma "essência
humana", fruto de um sopro divino, mas de uma necessidade material da
vida. O instinto social é característica de várias espécies --como as
abelhas, as formigas e vários mamíferos superiores. Através dele, a
reprodução do grupo entra em causa, condicionando as ações e escolhas
individuais.
NOVO PERCURSO
No
homem, desde a divisão de trabalho entre macho e fêmea para cuidar da
cria (longamente inabilitada para, sozinha, prover a vida) até o
desenvolvimento das instituições sociais, como a ciência ou a medicina,
um novo percurso evolutivo se instaura quando crianças, velhos e
indivíduos menos aptos são protegidos, em vez de eliminados.
Uma
seleção natural de instintos e comportamentos antieliminatórios (ou
"antisselecionistas") vai tomando corpo e reprimindo as ações
eliminatórias.
O
resultado cego desse longo processo é a civilização, isto é, a
repressão sistemática da "lei do mais forte" na medida em que padrões
encontram formas de se impor ao grupo e se sobrepor aos do indivíduo.
Tort verá nesse mecanismo a "reversão da seleção natural", ou o
nascimento da civilização sem ruptura com a dimensão biológica da vida.
Em outras palavras, a base material, natural, da moral.
"A
Descendência do Homem" traz uma segunda parte, sobre a "seleção
sexual". Nela, o cientista inglês mostra justamente a necessidade do
altruísmo --a capacidade de dar a vida por outros membros da espécie--
como fator de evolução. Por que em certas espécies, notadamente de aves,
o macho é muito mais belo e exuberante que as fêmeas? Simplesmente
porque, ao se desenvolverem dessa forma, eles têm mais chances de serem
"escolhidos" pelas fêmeas e criarem descendência. Mas o pavão, por
exemplo, ao desenvolver sua beleza perde a capacidade de voar, ficando à
mercê dos predadores. Essa inabilitação adquirida só se explica pelo
"altruísmo": correr riscos, o autossacrifício em nome do outro, da
descendência.
Por
esse mecanismo da seleção sexual, o homem também terá capacidade de
alterar seus caracteres secundários. Sendo espécie polimórfica, variará
na cor da pele e outros traços físicos exteriores ao perseguir padrões
de beleza restritos a cada grupo humano isolado. O "belo ideal" é um
conceito social que se materializa nos indivíduos que ocupam a chefia do
grupo, nas mulheres que utilizam adornos, nas estátuas que representam
os deuses e assim por diante.
Esses
padrões se tornam dominantes na medida em que passam a intervir nas
escolhas matrimoniais e, por esse processo, disseminam-se pelo grupo.
Nada disso precisa ser consciente para agir sobre o homem, como o
instinto não é consciente no animal.
Caminhos
como esse mostram, mais de um século depois, a dimensão insuspeitada de
uma obra que parecia "caduca" aos olhos das ciências naturais e
ciências humanas. Trata-se de um clássico que, finalmente, impõe sua
grandeza intelectual.
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