Foi necessária a morte
de um ator global para as autoridades se preocuparem com os impactos da
Usina Hidrelétrica do Xingó no Rio São Francisco, em operação desde
1994. O ator Domingos Montagner morreu afogado na última quinta-feira, quando mergulhou nas proximidades da Usina Hidrelétrica de Xingó, em Sergipe.
Já se sabia que a forte correnteza da região onde Montagner mergulhou era provocada pela vazão
da usina. A operadora da usina, no entanto, ainda não tornou público o
nível de vazão da água, portanto ainda não está claro se houve uma
alteração do fluxo no dia do acidente.
A Prainha de Canindé do São Francisco
fica a aproximadamente 2 km abaixo da barragem. No entanto, ao contrário
das regiões litorâneas, onde há sinalização sobre as correntes, os rios
não possuem informações o suficiente para os mergulhadores.
Foi o impacto na corrente, provocado
por uma usina hidrelétrica, que fez com que os indígenas Juruna da Volta
Grande — que moram logo abaixo da barragem Pimental, do Complexo Belo
Monte, no Pará — perdessem barcos e não deixassem mais as crianças
brincarem sozinhas na beira do rio.
Eles têm medo das “tsunamis
artificiais”, explica Brent Millikan, especialista em barragens e
diretor da empresa International Rivers no Brasil: “Os Juruna falaram
isso, que não parece mais um rio, parece maré, sobe e desce. Só que maré
tem hora certa de subir e descer, e o rio agora, não. Ele sobe e desce a
qualquer hora”.
O Brasil, segundo maior produtor de hidroeletricidade no mundo, depende em usinas para 75% da sua de eletricidade. Há 158 usinas em operação no país, 9 em construção e mais 26 projetos autorizados.
Falta sinalização
Segundo o pesquisador,
“deveria haver um sistema de comunicação para todo mundo que vive rio
abaixo (sobre as alterações na vazão das hidroelétricas) —índios,
banhistas, turistas— mas isso não existe”.
Em entrevista ao programa Mais Você,
o comandante do 9º Grupamento de Bombeiros Militar (GBM) de Alagoas,
tenente-coronel Carlos Burity, disse na sexta-feira, 16, que será
necessário rever as estratégias
de trabalho em áreas turísticas, como é o caso de Prainha, para evitar
afogamentos. Segundo ele, o rio mudou depois das construções das usinas
de Paulo Afonso, no Alto Sertão da Bahia, e da hidrelétrica de Xingó.
De acordo com a vazão da usina de
Xingó, a velocidade da água —que já costuma ser acelerada — aumenta,
tornando-se difícil até mesmo para as embarcações que transitam no local. No início deste ano, um adolescente morreu afogado ao passar de barco na mesma região de Montagner.
Operadora não revela dados sobre a vazão
A Companhia Hidro Elétrica do São
Francisco (CHESF), operadora da usina do Xingó, informou que “não houve
alteração na vazão” durante o dia do acidente, mas não deu informações
detalhadas, porque — conflituosamente — também afirma que está
“levantando os dados para a confirmação” dessa mesma informação.
No início do ano, uma liminar elevou a vazão mínima do reservatório para 900 metros cúbicos por segundo,
justamente para manter o nível do rio e diminuir o impacto das fortes
alterações da vazão. Mas a CHESF recorreu, e o impasse sobre o nível
mínimo segue, sendo o indicado pelo IBAMA de 1300 metros cúbicos por segundo.
Conforme o relato
do delegado Antônio Francisco Oliveira Filho, que colheu depoimento da
atriz Camila Pitanga, que estava com Montagner no momento do
acidente,”os dois entraram na água, e a correnteza ficou forte de
repente. Camila nadou rápido e conseguiu abraçar uma pedra. Ela chegou
ver o Domingos nadar contra a correnteza, mas ele cansou e afundou”.
O professor Jorge Henrique Prodanoff,
do departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente da escola
politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que
mudanças na potência das hidrelétricas acontecem por todo o país.
De acordo com o horário de pico no uso
da rede de energia, as hidrelétricas podem incluir mais uma turbina
para fornecer mais energia, o que aumenta a correnteza rio abaixo. Isso é
feito para atender a um pedido do Operador Nacional do Sistema (ONS).
Segundo o professor, isso explica os
casos de índios que perdem seus barcos, ou de regiões onde as crianças
não podem mais brincar, porque o rio pode aumentar a correnteza e a
profundidade inesperadamente. No entanto, para o professor, “mesmo que
tenha a hidrelétrica, a responsabilidade não pode ser colocada na
operadora”. Para ele: “Bastou ver o lugar onde eles estavam nadando para
entender. O meio do rio é sempre de corrente mais forte, ainda mais se
for pedregoso. É um ponto proibitivo do rio. Eles deveriam ter
perguntado antes de mergulhar, qualquer morador saberia informar isso a
ele.”
Montagner não foi o primeiro
Quando se começou a falar sobre o projeto da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, índios e especialistas
manifestaram preocupação com os impactos ambientais que a usina poderia
ter. A questão é a mesma que envolve as fortes correntezas que
arrastaram Montagner: a barragem diminui a vazão do rio e o volume de
água varia de forma abrupta, causando impactos ambientais.
Foi o que aconteceu na hidrelétrica de
Lajeado, no rio Tocantins. A operadora aumentou a vazão para atender
pedido do ONS, provocando uma piracema que levou à morte de toneladas de peixes.
Quando os peixes, levados pela correnteza, chegaram ao muro de concreto
da barragem, a operadora já tinha reduzido a vazão novamente. Os
animais ficaram agonizando em poços de água quente até morrer.
Não apenas os peixes, mas banhistas também sofrem com as oscilações do rio Tocantins. Em um alerta
do Batalhão de Polícia Militar Ambiental, feito em agosto, indica-se
evitar inclusive as margens do rio, para evitar “risco associado à
elevação do nível do rio, que pode ocorrer rapidamente”.
Casos parecidos, de forte correnteza que levaram a afogamentos, foram registrados em Rondônia, nas proximidades das usinas de Santo Antônio e Jirau; e na fronteira entre São Paulo e Minas Gerais, onde há a hidrelétrica de Marimbondo, no Rio Grande.
Em diversos casos, inclusive na região do acidente do ator Montagner, não havia salva-vidas ou sinalização no local. “É
preciso investigar para saber (se houve alteração da vazão da
hidrelétrica no dia) e, se esse for o caso, talvez pelo menos sirva para
chamar a atenção e, quem sabe, evitar outras tragédias”, resume
Millikan.
Helena Borges - The Intercept Brasil
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