Do welfare ao warfare State
por Sonia Fleury, no Le Monde Diplomatique Brasil, via Blog do Cebes
A sociedade brasileira vive nas últimas três décadas o desafio de
construir um país democrático, a depender da retomada do desenvolvimento
econômico compatibilizada com a efetiva redistribuição social, dentro
de um quadro de estabilidade institucional.
Recentemente, o debate democrático tem se concentrado no pilar
institucional, enfatizando a transparência e o arranjo entre os poderes
da República, como se as questões culturais e redistributivas já
estivessem equacionadas.
Ao contrário, constata-se que está havendo uma transmutação
regressiva do social, com a presença de valores conservadores, uma
articulação nefasta entre política e moralismo religioso, além do
incentivo ao empreendedorismo individual e ao consumismo, em detrimento
de formas solidárias de sociabilidade e da existência de mecanismos
institucionais de proteção social pública.
Esse movimento tem nos afastado cada dia mais dos ideais de
democracia social que foram corporificados no texto constitucional. Essa
transformação vem sendo feita sem alarde, mas com grande impacto, pois
tem sido capaz de transformar o projeto original do Estado de bem-estar
social (welfare state) em um Estado de gestão empresarial e militarizada
(warfare state), cujas consequências políticas e sociais estão por ser
avaliadas.
A construção da democracia brasileira tem como marco a Constituição
Federal de 1988, em que se corporificou um projeto de democracia social
que respondia aos anseios societários de construção de uma nova
institucionalidade sob o primado da justiça social.
O desafio de promover a inclusão social e a redistribuição de renda
em uma das sociedades com maior nível mundial de desigualdade teve de
enfrentar vários entraves, mas contou com a organização da sociedade
civil em torno da reivindicação de direitos sociais e da construção de
sistemas universais de proteção social, estruturados de forma
descentralizada e participativa como requisitos fundamentais para a
universalização da cidadania.
Com a criação da Ordem Social, pela primeira vez os direitos sociais
deixavam de ser subsumidos no capítulo da Ordem Econômica, onde existiam
exclusivamente como direitos do trabalhador, passando à condição de
direitos universais da cidadania.
No entanto, a institucionalização desse ordenamento constitucional se
deu em um novo contexto político e econômico, com o predomínio dos
ditames neoliberais de supremacia do mercado e das políticas de ajuste
fiscal. Tais medidas implicaram a subversão das condições necessárias ao
desenvolvimento de políticas públicas que assegurassem a transformação
dos direitos na lei em direitos em exercício.
Além das condições estruturais que sempre reproduziram desigualdade e
exclusão social de forma persistente, concorreram para contaminar o
modelo de Estado de bem-estar social desenhado para a democracia
brasileira diferentes ordens de limitantes.
Entre eles destacamos fatores culturais, com o predomínio dos valores
individualistas e de consumo; ideológicos, com a valorização da lógica
do mercado como melhor provedor de bens coletivos; políticos, fruto de
um sistema organizado como presidencialismo de coalizão, o que terminou
por aprisionar os partidos mais modernos na velha dinâmica de barganha
de prebendas em troca de lealdade dos setores conservadores e
religiosos, majoritários no Congresso; administrativos, em função da
deterioração dos salários do funcionalismo público, perda de quadros
qualificados e opção pela substituição de prestadores públicos por
provedores privados; e econômicos, com a subordinação da política
conômica à dinâmica especulativa financeira e às necessidades de
controle inflacionário, o que se traduziu na adoção de elevadas metas do
superávit fiscal ao lado da manutenção de altíssimas taxas de juros.
Ambas as medidas foram responsáveis por aumento do déficit público e
redução do investimento, impacto negativo na atividade industrial,
aumento da taxa de desemprego, além da incapacidade estatal de
financiamento das políticas sociais.
A resultante da busca de construção de uma democracia social em
condições tão adversas é hoje não apenas uma questão teórica em aberto,
mas inspira também, no Brasil, as lutas políticas de resistência ao
desmantelamento da proposta constitucional e a busca de novas
estratégias de institucionalização das políticas sociais em situações
desfavoráveis. Ainda assim, muitos preceitos já foram
desconstitucionalizados, em especial na área dos direitos
previdenciários, que impõe custos mais elevados ao governo e aos
empresários.
O financiamento da seguridade sempre foi alvo de disputas e tensão,
já que a destinação de fontes específicas para a formação de um
orçamento completamente separado do orçamento fiscal e integrado apenas
pelos gastos com previdência, saúde e assistência nunca foi efetivamente
cumprida.
Houve também uma reversão das prioridades desde as políticas
universais em prol de novas políticas do tipo focalizadas, gerando um
híbrido institucional nesse campo. Enquanto isso, outras diretrizes
constitucionais, apesar de mantidas, não foram regulamentadas ou
suficientemente respeitadas, dando espaço a novas articulações entre
Estado e mercado, em especial no caso da saúde.
Ficou assim caracterizada a existência de uma espécie de
institucionalidade oculta, já que interesses mercantis passaram a
circular no interior dos sistemas públicos universais, cujo desenho
original foi orientado pelo princípio da desmercantilização da proteção
social.
Essa condição de ocultamento da circulação de mercadorias, subsídios,
lógica de gestão, compras de serviços e insumos, promiscuidade de
inserções profissionais e dupla porta de entrada para usuários permite
que, mesmo estando à margem da lei ou operando em suas brechas, essa
institucionalidade favoreça interesses particulares em detrimento da
dimensão pública das políticas sociais.
O pior efeito do ocultamento é que ele não chega a ser tematizado na
agenda governamental. Essa prevalência do mercado se mantém e se amplia,
mesmo diante da crise do neoliberalismo. A reação dos governos
progressistas se fez sentir na busca da retomada do desenvolvimento
econômico nacional, desta vez com ênfase no combate à pobreza, ainda que
limitada pelo constante temor do retorno do desequilíbrio
inflacionário.
Recentemente, foram tomadas medidas de políticas públicas voltadas
para impulsionar o desenvolvimento, tais como: transferências de renda,
distribuição de subsídios a setores industriais, aumento sustentado do
salário mínimo e do crédito popular e ampliação do investimento público.
Essas medidas expandiram tanto o consumo popular como a capacidade
competitiva de alguns grandes grupos nacionais, fortemente apoiados por
investimento público, além de seu poder de definição da agenda pública.
A redução da pobreza, fruto tanto do crescimento econômico quanto das
políticas salariais e de assistência social, contribuiu para o clima de
otimismo e de consolidação da institucionalidade democrática no Brasil.
Já o impacto na diminuição da desigualdade foi enfraquecido pela
constante negação do acesso da população mais pobre aos serviços
públicos de qualidade em áreas como educação, saúde, transporte,
saneamento e moradia.
Essa mudança de rumo no contexto pós-neoliberal não se caracterizou
por sua superação ou pela retomada do projeto social-democrata. O social
foi traduzido constitucionalmente na década de 1980 em termos de
direitos universais de cidadania a serem assegurados por um Estado
democrático, descentralizado, laico, participativo e com mecanismos
solidários que deveriam se traduzir em um sistema tributário progressivo
e em contribuições sociais exclusivas.
Já a ressignificação do social a partir dos anos 1990 afastou-se dos
sistemas universais dos direitos sociais, onerosos para um Estado
endividado, e se transmutou em políticas e programas focalizados de
combate à pobreza. Políticas sociais não falam mais de direitos
coletivos, mas de necessidades e riscos familiares que devem ser
enfrentados por meio de transferências condicionadas de rendas mínimas.
Essa disputa de significados sobre a qualificação do social é
ideológica, mas também político-institucional. Em torno desses dois
modelos se articularam duas coalizões com projetos distintos de
sociedade. No entanto, essa disputa não é um jogo de soma zero,
envolvendo perdedores e ganhadores dos dois lados. Institucionalmente, o
modelo da seguridade social da Constituição de 1988 terminou por se
impor, e as políticas focalizadas deixaram de ser uma alternativa às
políticas universais, encontrando sua inserção institucional no interior
de sistemas de políticas sociais que têm como referente a cidadania.
Já do ponto de vista político-ideológico, a disputa foi claramente
favorável às políticas focalizadas, que ganham espaço na mídia como as
principais responsáveis pela atual reestratificação social que culminou
com ampliação da classe média. Em vez da noção de direitos como
articuladora das relações e das normas que orientam as políticas, o que
qualifica o social, nesse caso, é a capacidade de consumo dessa nova
classe emergente.
Compatível com uma representação de sociedade que cada vez mais
valoriza o consumo e a ascensão vista da perspectiva do
empreendedorismo, a agenda pública passa a ser construída
predominantemente por atores poderosos, como a empreendedorismo, a
agenda pública passa a ser construída predominantemente por atores
poderosos, como a mídia e o mercado.
A política social adequada é vista como aquela que retira o pobre da
situação-limite por meio de transferências públicas mínimas, de forma a
aumentar seu poder de consumo sem desestimulá-lo ao trabalho. Sem
representar também um custo demasiadamente alto para os empregadores ou
comprometer o déficit público.
Ao contrário, o combate à exclusão por meio de instrumentos de
crédito e transferências é associado à capacidade de ampliação do
mercado nacional e à redução da vulnerabilidade da economia às crises
internacionais. Porém, um novo movimento de redefinição do social começa
a se configurar a partir da necessidade de enfrentamento da violência
urbana e do que se convencionou chamar cidade partida, para designar a
fratura social e jurídica entre as populações residentes em diferentes
zonas urbanas.
Medidas pontuais, como programas de urbanização, não conseguiram
modificar essa situação de apartação, e o crescimento do domínio de
narcotraficantes sobre os territórios das favelas terminou por gerar um
medo generalizado, aumentado pela sensação de perda de controle estatal
sobre a cidade, barbarizada pelas guerras entre facções de traficantes
rivais.
O investimento da cidade do Rio de Janeiro em uma nova inserção
internacional, disputando e vencendo a postulação para sede dos
megaeventos, terminou por comprometer os três níveis governamentais com a
urgência de equacionamento do problema da violência urbana, pelo menos
na área mais rica e turística. A ocupação militar permanente de algumas
favelas em posições estratégicas passou a ser adotada nos últimos anos,
sob o nome de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).
Essa política de ocupação das favelas foi fortemente ancorada no
apoio de grupos empresariais, na sua formulação, financiamento e
execução. Ela tem prioritariamente um componente repressivo, militar e
policial, que busca garantir a ocupação e o domínio estatal desses
territórios e o controle sobre suas populações. No entanto, seu
direcionamento é para a reforma urbana que se está processando
rapidamente, com maciços investimentos públicos e privados, e grandes
especulações na área de construção civil e imobiliária.
Já o componente social é representado por uma miríade de ações de
órgãos, governamentais e não governamentais, que buscam capacitar a
população da favela para uma melhor integração à cidade. O foco deixa de
ser o pobre e suas necessidades básicas para se deslocar para o
território com sua aglomeração habitacional subnormal e para a população
favelada, cuja sociabilidade é tida como incompatível com a ordem e a
formalização essenciais à vida na cidade.
O social é concebido como processo de aquisição de habilidades
necessárias ao ordenamento dos comportamentos, das moradias, da
sexualidade, dos laços familiares e comunitários, das expressões
culturais. Os programas e atividades sociais visam ocupar os jovens e
adolescentes para evitar que caiam na criminalidade, vista como fruto do
ócio, e educar os demais no papel de consumidores e cidadãos que
cumprem seus deveres de formalização e pagamento de impostos e serviços,
além de capacitá-los para que possam desenvolver habilidades
empresariais e, no caso de alguns, inserir-se de forma vantajosa no
mercado.
A integração urbana toma a forma de inserção no mercado, na medida em
que a própria cidade passa a ser concebida como mercadoria. O ideário
de uma cidade participativa, que era parte do projeto de democracia
social, cede lugar a um imaginário de cidade que se projeta no cenário
internacional, como uma mercadoria que poderá ser vendida em proveito de
todos os seus habitantes. Para isso, é preciso que as políticas
públicas estejam estreitamente vinculadas aos interesses dos grupos
empresariais que passaram à condição de sócios privilegiados do governo.
Os benefícios atribuídos à pacificação das favelas, em relação à
presença armada do tráfico, são sentidos pela população da cidade e
também pelos moradores das favelas. No entanto, a opinião pública
desconhece os conflitos que se apresentam no cotidiano das favelas, onde
a ordem repressiva passa a predominar sobre qualquer ordenamento
jurídico existente, transformando essa conquista em um tipo de Estado de
exceção, cidade de exceção, cidadania de exceção.
Mas é preciso reconhecer que esse modelo decisório sem transparência,
participação ou controle social é um modelo de gestão autoritária, que
mina as bases da recente construção democrática brasileira, onde regime
de exceção vira regra.
Sonia Fleury é doutora em Ciência Política, professora
titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas
(Ebape/FGV), onde coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública
(Peep), ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e
membro da Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século
XXI.
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