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30 abril 2012

8 MIL PÁGINAS DE RASCUNHOS DE PROUST MOSTRAM SUA OBSESSÃO EM CRIAR OBRA -PRIMA "EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO"


Marcel Proust, em 1922 (Foto: Popperfoto / Getty Images)
Marcel Proust, em 1922 (Foto: Popperfoto / Getty Images)

EM BUSCA DA PERFEIÇÃO
Os rascunhos deixados por Marcel Proust que estão sendo transcritos por pesquisadores brasileiros confirmam o processo de criação caótico e obsessivo do mestre francês
(Reportagem de Marcelo Bortoloti publicada na edição impressa de VEJA)

Em Busca do Tempo Perdido, do francês Marcel Proust (1871-1922), marco da literatura universal, é um romance em sete volumes cuja leitura requer muita dedicação.
A obra genial de Proust foi construída com frases extensas e narrações detalhistas que desafiam o poder de concentração. O encadeamento da narrativa conta pouco e se submete à análise emocional e psicológica implacável de cada personagem.
8 000 página de rascunho distribuídas em 75 cadernos
Proust convida o leitor a um mergulho profundo nas paixões humanas, nas circunstâncias da vida em sociedade e nos efeitos da passagem destrutiva do tempo. Nos bastidores dessa obra monumental, que lhe consumiu catorze anos de vida, Proust deixou um trabalho paralelo.
São 8 000 páginas de rascunho distribuídas em 75 cadernos escolares, testemunhos de que também no processo de escrever ele obedecia a um roteiro singular. Preservado há décadas na Biblioteca Nacional da França, em Paris, o material está sendo transcrito e analisado por especialistas de diversos países.
Oito cadernos foram confiados a um grupo de estudiosos brasileiros. A primeira transcrição entre as 75 a ficar pronta foi a do caderno número 28. Ela será publicada pela editora belga Brepols ainda neste ano. “O trabalho traz à luz a forma aparentemente caótica e obsessiva de Proust escrever”, resume Philippe Willemart, professor da Universidade de São Paulo (USP) à frente da equipe brasileira.
Visão parcial do quarto onde Proust escreveu, na cama e sob as cobertas, parte de sua obra. O quarto está exposto no Museu Carnavalet, em Paris (Foto: udenap.org)
A transcrição do caderno 28, que consumiu quatro anos, mostra a intensidade com que Proust mergulhava na escrita, reescrevendo uma cena inúmeras vezes, testando diferentes imagens até alcançar o efeito desejado em suas metáforas refinadas, de rara beleza plástica.
Para descrever os ramos de erva usados por uma personagem para preparar o chá, Proust começa afirmando que eles guardavam a luminosidade de um “crepúsculo de outono”. Uma segunda versão fala em “florescentes e doces como um dia de verão”. A forma definitiva é sublime: “Eram exatamente aqueles que, antes de florirem o saco da farmácia, haviam embalsamado as noites de primavera”.
Proust só se dava por satisfeito quando a comparação deixava de ser mera curiosidade estética. No caso dos ramos de chá, o trecho avança associando as flores mortas à vida apagada e doentia da personagem. Pelos rascunhos transcritos, Proust revela outras características de seu processo criativo.
O caderno 28 contém vários trechos que apareceram em À Sombra das Moças em Flor, segundo volume da obra, mas em nenhum deles há uma única menção a Albertine, personagem inspirada em Alfred Agostinelli, seu motorista e secretário, por quem Proust nutria uma paixão homossexual.
Albertine é figura central nesse e em três outros volumes do romance. “Proust pensava a obra como um todo o tempo inteiro, sem organizar inicialmente suas ideias em capítulos ou volumes”, diz Guilherme Ignácio, tradutor e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que participa do projeto.

RISCA E RABISCA Proust: 75 cadernos de anotações desordenadas para compor Em busca do tempo perdido
RISCA E RABISCA -- Proust: 75 cadernos de anotações desordenadas para compor " a obra-prima da literatura mundial "Em Busca do Tempo Perdido"
É de grande complexidade a tarefa da equipe comandada por Willemart, belga radicado em São Paulo e um dos primeiros a dedicar-se à análise de manuscritos literários no Brasil. Às anotações, com muitas rasuras e emendas que cobriam as páginas, Proust acrescentava frases espremidas nas laterais e em pedaços de papel que colava no fim da folha – um desses, desdobrado, atingiu 2 metros de comprimento.
O trabalho dos pesquisadores consiste não só em transcrever cada frase das anotações originais como também em analisar cada trecho, mostrar onde a ideia ou a narrativa foi interrompida naquele caderno e retomada em outro e, claro, comparar os fragmentos com a versão final escolhida por Proust.
O primeiro volume da obra-prima foi recusado por duas editoras
Ao preencher o caderno 28, escrito entre 1910 e 1911, Proust ainda pretendia reunir sua obra em três livros, e não em sete. O primeiro volume, No Caminho de Swann, viria a ser publicado em 1913 à sua própria custa, depois de ser recusado por duas editoras.
O racionamento de papel provocado pela I Guerra Mundial obrigou o escritor a esperar cinco anos antes de lançar o segundo volume. Nesse intervalo, o romance foi sendo replanejado. “Ele já tinha pensado em um fecho para a obra quando publicou o primeiro volume. O que cresceu e se modificou nesse meio-tempo foi o miolo do livro. Os manuscritos mostram que Proust pretendia expandi-lo ainda mais, tendo morrido antes de realizar seu plano”, diz Ignácio.
O escritor morreu aos 51 anos, afastado de tudo e de todos, movido pela obsessão de aprimorar seus livros. [Proust, segundo depoimento de amigos, chegava a trancar-se por dias em seu quarto, escrevendo compulsivamente debaixo das cobertas.] Deixou seis prontos. O sétimo, O Tempo Redescoberto, foi montado a partir de trechos dispersos que seu irmão Robert levou cinco anos para reunir em uma narrativa coerente.
Proust produziu exatamente o que ambicionou, uma obra imortal.

do Blog de Ricardo Setti

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