Artigo de Carlos Orsi no blog dele para reflexão:
Do risco de só se ver canalhas do outro lado
Enquanto
pesquisava para a reportagem sobre teorias da conspiração que saiu na
edição de julho da revista Galileu, encontrei alguns artigos de
psicólogos e cientistas políticos que mencionavam o fenômeno da
polarização: em linhas gerais, quando um grupo de pessoas que têm uma
opinião comum, ainda que moderada -- digamos, que o Lula não foi um
presidente assim lá tão bom quanto se diz, ou que o capitalismo é um
sistema que tem lá seus problemas -- se reúne para conversar, existe uma
tendência muito forte de que, ao fim do papo, todos saiam do encontro
um pouco mais radicalizados do que entraram.
No
caso do exemplo acima, seria, numa caricatura exagerada, como se os
críticos moderados de Lula saíssem declarando-o o pior presidente da
história, ou os defensores da reforma sutil do capitalismo saíssem
berrando por la revolución. O problema com esse efeito de polarização é
que ele raramente se baseia em evidências ou argumentos: trata-se apenas
de um efeito de manada, da tendência que temos em reforçar o que nos
liga ao grupo com que nos identificamos e "aparar" diferenças.
Como
cada peixe de um cardume corrige sua rota a partir da observação da
posição relativa dos que estão mais próximos, assim os seres humanos
tendemos a administrar nossas emoções e, por tabela, nossas ideologias.
A
polarização, ao mesmo tempo em que aumenta a solidariedade interna do
grupo (mesmo que, muitas vezes, ao preço de sacrificar uma visão mais
sóbria da realidade) tende a excitar a desconfiança e a hostilidade aos
de fora.
Nessas
horas, é fácil citar casos claramente patológicos, como o da Família
Manson, ou trágicos, como o de David Koresh, mas é importante notar que
isso acontece com todo mundo, o tempo todo: se eu acredito em X, e a
esmagadora maioria das pessoas cuja companhia valorizo e cuja
inteligência e bom-senso respeito também acreditam em X, então quem não
acredita em X é ou idiota ou está de má-fé. O raciocínio é tão límpido,
tão inescapável, que mobiliza as paixões mais intensas. Mesmo sendo
inválido.
Como
qualquer neurocientista -- ou publicitário -- terá prazer em lhe
explicar, o cérebro humano é construído de forma que associações fortes e
frequentes entre eventos tendem a se tornar automáticas e quase que
permanentes no espaço mental. Assim, depois de algum tempo, você não
conclui mais que quem diz não-X possivelmente é idiota ou talvez esteja
de má-fé. Você sente, nas entranhas, de modo automático, que a pessoa na
sua frente é um imbecil indigno de respeito. Daí à desumanização, é um
pulo. E da desumanização à crença de que os fins justificam os meios --
de que "nada é ruim demais" para "essa corja" -- é outro, razoavelmente
menor.
Some-se
a isso fato de que mensagens simples e diretas são mais facilmente
assimiladas que discursos complexos e cheios de nuances, e o caldo está
feito.
Toda
a peroração acima foi motivada pelo estágio atual do debate sobre a
questão dos médicos cubanos, em particular, e pelo estado do Fla-Flu
ideológico brasileiro, em geral, que cada vez menos parece uma disputa
entre times e, cada vez mais, uma briga de torcidas, e das feias, com
lança-foguetes e cadeiradas pra todo lado.
Quem
acompanha o blog há algum tempo sabe que não tenho nada contra o uso
tático de retórica forte, mas há linhas a traçar entre discurso,
incitação e ação, traçadas séculos atrás por Stuart Mill, que é sempre
bom ter em mente. Como é sempre bom ter em mente a diferença entre fato e
metáfora, e entre verdade incômoda e mentira conveniente (para ficar
num caso só, que vem se mostrando especialmente virulento no ambiente
maniqueísta das redes sociais, as doações do Criança Esperança vão para a
Unesco, não para a Rede Globo).
Polarização,
solidariedade para com os colegas de grupo, desconfiança para com os de
fora são fenômenos humanos, naturais. Mas ciúme também é, e quando as
pessoas começam a apedrejar jornalistas, ou médicos falam em deixar
pacientes à própria sorte, parece que estamos chegando perigosamente
perto do equivalente ideológico de uma onda de crimes passionais.
Há
quem diga que as redes sociais agravam a polarização, criando espaços
onde as pessoas conseguem filtrar as verdades inconvenientes que
poderiam desmontar seus maniqueísmos particulares, interagindo apenas
com quem já concorda, ou tende a concordar, com elas. E o resto flui
daí, em cascata.
Mas
não precisa ser assim: a capacidade de se pôr no lugar do outro é, à
exceção dos psicopatas, tão inata quanto o impulso de seguir a manada.
Assim como a de refletir antes de repetir, de respirar antes de se
exaltar. E com um pouco de curiosidade honesta, sempre dá para dar uma
olhada na posição do adversário e ver se não há algo de razoável ali ou,
pelo menos, procurar os verdadeiros erros de raciocínio e de conceito,
além das -- supostas ou reais -- falhas de caráter.
O
pior efeito da polarização, no espírito humano, é a certeza arrogante
de que, fora da nossa posição, seja ela qual for, só existem cretinos e
canalhas.
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