Por Hermes C. Fernandes
O livro de Apocalipse é repleto de simbolismo. Dentre as figuras usadas
ali, talvez as mais assustadoras sejam das bestas. Uma vem da terra, a
outra, do mar. Dentro de uma interpretação preterista, uma seria o
judaísmo apóstata dos tempos apostólicos, e a outra, o império romano.
Apesar de concordar com tal leitura, creio que o sentido do livro mais
enigmático da Bíblia não se esgota no cumprimento histórico de suas
profecias. Proponho uma leitura arquetípica, em que, ao longo da
História, em que as carapuças cabem em muitas outras estruturas de
poder. Ainda que tenha se cumprido no primeiro século, a profecia segue
em seu cumprimento como que num efeito dominó.
Não precisamos nos esforçar muito para identificarmos quais seriam hoje
as bestas de nosso tempo. Não se trata propriamente de pessoas, mas de
estruturas de poder que visam exercer soberania sobre os homens,
usurpando, assim, o lugar de Deus.
A primeira besta que ameaça a nossa civilização é o Estado. Em vez de
ocupar o papel de benfeitor confiado por Deus, o Estado se arroga no
direito de exigir total subserviência de seus cidadãos. A máquina
pública se agiganta, tornando-se num enorme elefante branco, incapaz de
cumprir os desígnios que foram atribuídos. Impostos abusivos, corrupção,
injustiça social, são algumas das marcas desta famigerada besta.
A segunda besta que nos ameaça a todos é o Mercado. Mamom é seu patrono.
Como a primeira besta, esta também exige total lealdade. Em vez de
cidadãos, somos relegados à posição de meros consumidores. Especulação,
juros astronômicos, distribuição injusta das riquezas, desemprego, são
algumas das marcas deste monstro.
Toda besta busca ser legitimada por um falso profeta. O lugar antes
ocupado pela religião, agora é ocupado pela Mídia. Cabe a ela trabalhar
pela manutenção do status quo, bem como inebriar as pessoas,
suspendendo seu senso crítico, a fim de que se tornem presas fáceis
desses monstros. Tanto a religião, quanto os esportes e a cultura acabam
exercendo papel coadjuvante no processo. A Mídia, todavia, é quem
assume o papel de orquestrar a sinfonia do engano e da ilusão.
Estado, Mercado e Mídia são a antítese da Trindade Divina. O Estado
paternalista no lugar do Pai. O Mercado sedutor no lugar do Filho. E a
Mídia ilusionista no lugar do Espírito Santo.
E onde entra a igreja nisso tudo? Qual deveria ser o nosso papel?
Não basta que a igreja anuncie as boas novas do reino. Ela deve
denunciar com a mesma veemência as estruturas de poder que repousam
sobre a injustiça, chamando os homens ao exercício pleno de sua
cidadania. Em vez de subserviência ao Estado, submissão consciente que
não prescinda da liberdade. E, quando necessário, insurgência contra
leias abusivas que violem nossa consciência. Em vez de consumo
exacerbado, o uso consciente dos recursos naturais e dos bens produzidos
pela sociedade. E no que diz respeito à Mídia, a igreja deve estimular
nos homens o senso crítico, a fim de que possam assistir de tudo, mas só
reter o que for bom. Não adiante promover boicotes culturais ou de
qualquer outra natureza. Tal procedimento, além de alienante, revela-se
contraproducente.
A igreja deve estimular o senso crítico. Há algo errado no mundo e que
precisa ser consertado. Por que há tanta pobreza? Por que o
meio-ambiente está sendo devastado? Por que a violência segue galopante?
Por que nossa educação está sucateada? A quais interesses servem os
poderes constituídos?
A abordagem que a igreja tem feito de alguns desses problemas é, no
mínimo, ingênua. Ou na pior das hipóteses, a igreja tem sido conivente.
Em vez de propor solução efetiva, ela prefere comer das migalhas que
caem da mesa do Estado. É daí que vem a indústria da miséria que
serve de locomotiva do terceiro setor. Por que preocupar-nos em resolver
o problema, se, no fundo, nos locupletamos dele? Se o problema for
resolvido, as tetas nas quais mamamos se secarão.
Com isso, a igreja dilui sua identidade e missão numa agenda
político-partidária, promiscuindo-se despudoradamente com os poderes
constituídos.
Como se não bastasse a relação incestuosa entre o Estado e o Mercado, a
igreja, em busca de visibilidade, acaba cedendo aos encantos da Mídia,
ingressando nesta orgia capaz de deixar os bacanais romanos parecendo
festa de criança.
O que a igreja necessita não é de visibilidade, mas de credibilidade. E
isso só virá quando deixar de dar ouvidos ao canto da sereia, e
voltar-se para os necessitados, excluídos e vítimas desses monstros
cruéis. Ademais, nada atenta mais contra a credibilidade e relevância da
igreja do que sua desconsertante performance no circo midiático.
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