Sempre acreditaram: a maior noite do Galo vista quase de dentro do campo
O choro e a fé de Victor, o sorriso de Réver, a emoção da torcida: como foi a final da Libertadores a dois metros do gramado
Uns dois metros para a frente, e ali está o campo. O campo, e nem ele
sabe disso, onde o Atlético-MG será campeão da Libertadores. Uns dois
metros para trás, e ali está a torcida - ela pulsa, pulsa, pulsa. A
torcida, e nem ela sabe disso, que será campeã da Libertadores. Que não
sabe, mas sente, pressente. E acredita como jamais algum ser humano
acreditou. Estar ali, na beira do gramado, tão pertinho, é sentir essa
mistura maluca de devoção, entrega e história. Desde cedo, quando a
imensidão do Mineirão foi rompida pela entrada em campo do time, com
Ronaldinho Gaúcho em surto psicótico, saltando, berrando, até o instante
final, com Victor explodindo em lágrimas, estava na cara: o 24 de julho
de 2013 seria a data oficial daqueles que jamais deixaram de acreditar.
Victor em prantos: o grande nome do título do Atlético-MG (Foto: Alexandre Alliatti)
O GLOBOESPORTE.COM passou cinco horas junto ao campo para sentir como
seria a final dali de dentro - de antes da partida até a hora em que a
taça da Libertadores ruma para o vestiário atleticano. Mais do que
qualquer plano tático, raciocínio técnico ou superação física, o jogo
escancarou uma enorme simbiose entre time e torcida. Foi um pacto. Não é
exagero: a quantidade de vezes que os atleticanos urraram gritos de "eu
acredito" das arquibancadas deve ter beirado uma centena.
Pierre ora, e Tardelli faz o mesmo ao fundo antes
de o jogo começar (Foto: Alexandre Alliatti)
de o jogo começar (Foto: Alexandre Alliatti)
E o time acreditou junto. Os jogadores foram a campo enlouquecidos. O
olhar de Ronaldinho não esteve opaco, perdido. Quando ele encontrou
aquele ambiente, virou o mais obsessivo dos atletas. No aquecimento,
parecia emular o Galo Doido, mascote que agita a torcida antes das
partidas. Não parava quieto. No instante em que os atletas estacionaram
em fila no centro do campo para respeitar um minuto de silêncio, ele
parou ao lado de Bernard, segurou a mão do garoto e a apertou firme, até
fazê-la doer. Só soltou quando foi hora de começar o jogo. Com palmas,
empurrou o elenco antes do apito final, enquanto Junior Cesar, perto da
linha lateral, cerrava os punhos e berrava na direção da torcida.
Pierre, ajoelhado, rezava. Tardelli, lá do outro lado, também. Que
clima. Que jogo.
O começo da partida logo rendeu a primeira chegada do Galo ao ataque.
Chute cruzado de Tardelli, para fora. Victor, no lado oposto do campo,
arregalou os olhos. Soltou um "Uuuuuuh". Virou para trás, na direção dos
torcedores, e gritou: "Vamooooooooooo." E a torcida foi. Apoiou sem
parar. Cantou o hino. Seguiu avisando que acreditava. Mas algo
desesperador acontecia: o time não correspondia em campo.
Victor voa para evitar gol do Olimpia: primeiro tempo complicado (Foto: Alexandre Alliatti)
O Olimpia esteve bem em parte do primeiro tempo. Sobressaiu-se no
meio-campo. Não fosse a atuação soberba de Réver e, muito especialmente,
de Leonardo Silva, sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Mas a dupla
de zaga foi impressionante. O capitão cortou todas por cima, uma depois
da outra. Parecia ter o triplo do tamanho dos rivais. Seu colega de
setor esteve ainda mais seguro. Ele encontraria a eternidade no segundo
tempo.
Tardelli lamenta gol perdido contra o Olimpia
(Foto: Alexandre Alliatti)
(Foto: Alexandre Alliatti)
Lá na frente, a situação não era bem assim. Por mais que Ronaldinho
Gaúcho chamasse o jogo, o setor ofensivo não fluía. Era um exagero de
bolas levantadas para a área. Bernard, Tardelli e Jô não conseguiam
triangular. A tensão chegou a ponto de a torcida murmurar resmungos
quando o camisa 10 não soube concluir a gol da entrada da área. Terminou
o primeiro tempo, e era palpável o sentimento de preocupação.
No intervalo, o Mineirão ficou mais pensativo, mais contemplativo, como
se calculasse o tamanho da bronca de se conseguir pelo menos dois gols
no segundo tempo. Mal sabia ele que Jô, entre três zagueiros, se
arremessaria na bola para, já no comecinho da etapa final, fazer o
primeiro gol do Galo.
É curioso: os jogadores pareciam não saber direito como comemorar o
começo da arrancada para o título. Queriam se abraçar, chegar perto da
torcida, mas logo lembraram que o tempo corria. Era preciso fazer mais
um gol. De preferência, mais dois. E lutar. Lutar, lutar, lutar, como os
atleticanos exigiam ao cantar o hino do clube - uma, duas, três, tantas
vezes.
Jô chuta entre três zagueiros e faz o primeiro gol do Atlético (Foto: Alexandre Alliatti)
A vida do Olimpia virou um inferno. A torcida mergulhou de vez no jogo,
e os atletas, em campo, vestiram alma de guerra. Foi impressionante a
transformação de Jô. Parecia sempre pular mais alto, sempre chegar mais
forte, sempre correr mais rápido. Ele quase fez mais um. Viu a bola ser
cortada perto da linha.
- Aaaaaaaaaaaaaaaaah. Filho da p...! - gritou o atacante.
Pressão, pressão, pressão. Rosinei entrou bem. Alecsandro também - em
falta nele, foi expulso Manzur. Já começava a ficar evidente que o
Olimpia sucumbiria. Ronaldinho quase fez. Tardelli levou as mãos à
cabeça. Jô teve nova chance. Ouviu seu nome ser gritado pela torcida
enquanto olhava aos céus, pedindo ajuda. Naquele momento, porém, o
auxílio divino parecia direcionado a Leonardo Silva.
O zagueiro teve uma chance. Cabeceou no travessão. Chegou a pedir
desculpas a Ronaldinho, que reclamava que o defensor deveria ter deixado
a bola para ele.
O zagueiro teve mais uma chance. Novo cabeceio, desta vez salvo pelo
goleiro Martín Silva, que já começava a se transformar em uma das
figuras da partida.
Ronaldinho vibra com Leonardo Silva no segundo
gol do Atlético-MG (Foto: Alexandre Alliatti)
gol do Atlético-MG (Foto: Alexandre Alliatti)
E aí o zagueiro teve o gol. Pequenos detalhes que mudam uma existência:
ocorre um primeiro cruzamento, e Leonardo Silva vai ao chão. Os
jogadores do Atlético pedem pênalti. A jogada segue. Sai novo
cruzamento, e aí o zagueiro marca. Se aquele pênalti tivesse sido
anotado, uns cinco segundos antes, o Galo seria agora campeão da
América?
É uma luta perdida tentar explicar o que aconteceu no Mineirão naquele
instante em que a bola de Leonardo cruzou a linha. Jô atirou-se ao chão.
Victor e Réver abraçaram-se. E o zagueiro correu até a linha lateral,
ficou de joelhos, ergueu as mãos aos céus. Foi abraçado, até sacudido,
por Ronaldinho. Ao fundo, torcedores choravam, soluçavam, abraçavam
pessoas que nunca tinham visto na vida - mas que eram atleticanos feito
eles, alma da mesma alma.
Restava infernizar o Olimpia até que saísse o terceiro gol, fosse no
tempo normal, fosse na prorrogação. Réver, gigantesco, cabeceou no
travessão. O gol tremeu, tamanha a força da conclusão de testa do
zagueiro. E ele não acreditou. Olhou para o goleiro, olhou para os
repórteres, olhou para o travessão. Sorriu. Logo depois, teve outro
cabeceio, desta vez para fora. E aí não achou mais graça.
- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah. C...! - berrou.
Seguiu a prorrogação, e nada do terceiro gol. Bernard desabou no campo,
com cãibras. Foi atendido por Luan, que recebeu o cartão amarelo mais
inusitado de sua vida ao se fazer de médico. O garoto foi atendido.
Cuca, ao lado dele, era uma figura quase cômica. Dizia ao jovem meia:
"Calma, calma." Enquanto isso, se mostrava o mais agoniado dos seres, já
sem unhas para roer.
Era 0h19m quando o apito do árbitro informou que a Libertadores de 2013
seria decidida nos pênaltis. Victor parou por um segundo e começou a
caminhar lentamente, como se entrar para a história do Clube Atlético
Mineiro fosse algo já escrito, apenas um papel que ele teria que
cumprir. Puro disfarce. Internamente, o goleiro vivia a maior aflição de
sua vida.
Victor, Victor, Victor. São Victor dos Milagres, como diziam algumas
bandeiras espalhadas por Belo Horizonte antes do jogo. Dos milagres
contra o Tijuana. Dos milagres contra o Newell's. Dos milagres contra o
Olimpia. Veja só: ali nas arquibancadas, atrás do gol, torcedores
rezaram um "Pai Nosso" antes de começarem as cobranças.
Victor recoloca crucifixo dentro do gol nas cobranças de pênaltis (Foto: Alexandre Alliatti)
Ao se posicionar para tentar evitar o primeiro chute dos paraguaios, de
Miranda, o goleiro colocou pouco além da linha um pequeno crucifixo,
entregue a ele por um roupeiro do Galo, que o havia recebido de um
torcedor. Victor, compenetrado, mergulhado nele mesmo, mal celebrou
quando defendeu o chute. Fechou a mão e fez um gesto discreto.
Lá foi Martín Silva, o goleiro do Olimpia. Pegou o crucifixo de Victor e
o tirou do gol. O atleticano olhou nos olhos dele. Encarou-o por uns
cinco segundos. Parecia querer esgoelá-lo. E assim se iniciou um ritual:
Victor colocava o crucifixo no gol, Silva tirava; Victor recolocava,
Silva tirava de novo.
O santo atleticano foi mais forte. Alecsandro bateu bem e fez uma
louvação à torcida. Ferreyra bateu na sequência: quase! A bola passou
sob Victor, a ponto de arrancar os cabelos, tamanha a revolta por não
ter pego a bola. Não teve problema: Guilherme, Jô e Leonardo Silva (que
partida, Leonardo Silva!) fizeram. E Gimenez errou.
Toda a população não-atleticana do planeta jamais entenderá o que
significou aquele momento, aquele pequeno corte no tempo, em que o chute
de Gimenez acertou o travessão de Victor. É como se mais de 100 anos de
vida explodissem em um único instante, num piscar de olhos. De olhos
encharcados.
Victor foi erguido aos céus. E chorou. Chorou como os torcedores que,
nas arquibancadas, ali pertinho dele, não conseguiam mais cantar nada.
Só derramavam as lágrimas de quem sempre acreditou. E de quem, depois
deste 24 de julho de 2013, jamais deixará de acreditar.
A emoção da atleticana: ela sempre acreditou (Foto: Marcos Ribolli / Globoesporte.com)
Nenhum comentário:
Postar um comentário