Rádio A Melhor do Universo

08 janeiro 2014

O EVANGELHO SEGUNDO FÉLIX




Por Hermes C. Fernandes 

“Amor à vida”, folhetim que vai ao ar pela Rede Globo em seu mais nobre horário já caminha para o seu desfecho.  Ainda que não tenha alcançado os índices esplendorosos de “Avenida Brasil”, a novela de Walcyr Carrasco conseguiu chamar a atenção de um público que tem sido considerado cada vez mais importante para a emissora: os evangélicos.

O autor recebeu da Vênus platinada a missão de reconquistar o público que havia debandado, provocando o fracasso de “Salve Jorge” de Glória Perez.

Deixando de lado questões mercadológicas, “Amor à vida” trouxe uma trama cujo tema principal delineado ao longo de sua exibição é a redenção.

De todos os seus personagens, nenhum exemplifica melhor isso do que Félix, o vilão vivido por Mateus Solano. A “bicha má” roubou a cena, conquistando a admiração do público, inclusive dos evangélicos. Para isso, Walcyr Carrasco, criado por uma família evangélica, colocou em seus lábios tiradas cômicas com episódios bíblicos. Nunca se viu um personagem gay que demonstrasse tanto conhecimento das Escrituras.  Mesmo quem não acompanhou a novela, divertia-se cada vez que lia alguma dessas tiradas exibida nas redes sociais. Uma de suas últimas foi: “Eu devo ter cobrado ingresso para o Sermão da Montanha.”

Confira abaixo algumas tiradas:

“Será que eu salguei a santa ceia?”
“Eu devo ter colado chiclete na Santa Cruz!”
“Devo ter feito uma peruca com os cabelos de Sansão!”
“Eu dancei pole dance na cruz!”
“Só posso ter assuado o nariz no Santo Sudário para merecer isso…”
“Será que eu engarrafei as águas do Rio Jordão?”

Quando a audiência já havia se acostumado com suas armações e estripulias, Félix é desmascarado, sofre um revés e perde tudo. Expulso de sua mansão, Félix encontra refúgio nos braços de sua ex-babá, a ex-chacrete Márcia (Elisabeth Savala), com quem vai vender hot-dogs na 25 de março (centro de comércio popular em São Paulo, equivalente ao Saara no Rio), depois de deixar a presidência do Hospital San Magno.

A bondade com que a pobretona brega o acolhera fez com que Félix repensasse sua vida e, aos poucos, se redimisse. O vilão capaz de jogar a própria sobrinha recém-nascida numa caçamba de lixo agora se tornara tão dócil a ponto de cuidar da netinha de Márcia.

Depois de flagrá-lo em sua performance como vendedor de hot-dogs, sua mãe, Pilar (Susana Vieira) resolve trazê-lo de volta ao lar sob a condição de que confessaria suas armações e restituiria a todos quanto havia defraudado (atitude certamente inspirada em Zaqueu). Apesar de relutante em admitir a mudança que sofrera, Félix resolve abrir o coração e revelar em um dos seus mais tensos diálogos com a irmã Paloma (Paolla Oliveira) e seu cunhado Bruno (Malvino Salvador) o que provocara a repentina transformação:

 “Eu olhava o mundo cheio de ódio. Até que eu conheci a Márcia... que me acolheu sem fazer perguntas (...) Este gesto de generosidade me iluminou. O meu coração sempre cheio de sombras e transformou, como na história dos Miseráveis, alguma coisa aqui dentro.”

Félix cita “Os Miseráveis”, um dos clássicos da literatura mundial, de autoria de Victor Hugo, e que teria sido indicado por seu filho na tentativa de apontar-lhe um caminho de redenção.  Aliás, um dos méritos da novela é incentivar os espectadores à leitura. Vários de seus personagens são frequentemente flagrados lendo algum livro. Jabá à parte, o fato é que o autor demonstra grande preocupação com a formação intelectual de seus espectadores, o que julgo ser um ponto positivo. Prefiro merchandising de livros ao de bebidas alcoólicas.

É de se admirar que o autor tenha escolhido justamente a personagem Márcia como o instrumento de redenção de Félix. Como uma mulher que passou a maior parte da novela incentivando sua filha a casar-se com um milionário para se dar bem poderia agora demonstrar por Félix um amor totalmente desinteressado? E não só isso. Ela mesma foi “redimida” ao receber em sua casa um desconhecido encontrado na rua, por quem se apaixonou. Gentil, nome que ela dá ao misterioso desconhecido, é, na verdade, Atílio (Luis Mello), administrador do hospital, que perdera a memória após um acidente automobilístico (mais uma das armações de Félix).

A lição que tiramos de tudo isso é que somente o amor gratuito, que nós, cristãos, chamamos de “graça”, é capaz de redimir o ser humano. Graça é aquele amor que não espera retorno. Aquilo que Paulo resume tão bem: "Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado" (2 Co.12:15).

É este amor que encontramos revelado plenamente em Jesus de Nazaré. Diferente dos personagens ambíguos de Walcyr Carrasco, Jesus jamais cometeu qualquer pecado. Não defraudou ninguém. Não se aproximou de quem quer que fosse por interesses escusos. Simplesmente, amou por amar. E Sua maior prova de amor se deu na Cruz, onde verteu Seu sangue inocente para redimir-nos de nossa maldade endêmica e crônica. 
Por maiores que sejam as críticas que evangélicos façam ao folhetim, o fato é que, encontramos mais do Evangelho nesta trama do que em muitos sermões que têm sido pregados nos púlpitos por aí. Deveríamos corar de vergonha por perceber o quão distante estamos da proposta de Jesus.

“Apesar de tudo que eu perdi, acho que ganhei muito mais com a Márcia.” Quem diria que ouviríamos isso dos lábios de Félix? Como gostaria de ouvir testemunhos em que, em vez de contar vantagens obtidas depois de haver se convertido, exporia a disposição de se perder tudo para ganhar muito mais: a vida plena de sentido ofertada por Cristo. Ou não foi isso que Paulo fez, deixando-nos exemplo?: Mas o que para mim era lucro passei a considerá-lo como perda por amor de Cristo; sim, na verdade, tenho também como perda todas as coisas pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a perda de todas estas coisas, e as considero como refugo, para que possa ganhar a Cristo” (Fp.3:7-8).

Pior do que salgar a santa ceia é “pisar o Filho de Deus”, “profanar o sangue da aliança” e “ultrajar ao Espírito da graça” (Hb.10:29). E é isso que muitos que se apresentam como palatinos da verdade, da moral e dos bons costumes, têm feito do alto de seus púlpitos.

Que muitas outras “pedras” sigam clamando, já que insistimos em nos calar. Que este clamor se faça ouvir nas salas de cinema, nos teatros, nas manifestações populares, e que ecoe dentro dos templos e no coração de todos os homens.  E quem nunca repetiu um desses bordões do Félix, que atire a primeira pedra!

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