O professor e consultor pernambucano Maurício Romão chamou
de “delírio reformista” o projeto de reforma política da OAB
apresentado no auditório do TCE-PE na última quinta-feira pelo
presidente nacional da entidade Marcus Vinicius Furtado Coelho.
O projeto também foi atacado pelo advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho que o classificou de “muito ruim”.
Leia, abaixo, o artigo do professor Maurício Romão, que esteve presente ao lançamento:
Desde as manifestações de rua do mês de junho que a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) vem colhendo assinaturas para apresentação de
um projeto de lei de iniciativa popular direcionado à reforma política,
incluindo mudanças no sistema eleitoral.Na sugestão da OAB as eleições
proporcionais serão realizadas em dois turnos. No primeiro, os eleitores
votarão apenas nos partidos (que apresentarão lista pré-ordenada de
candidatos). No segundo, os eleitores votarão somente nos candidatos dos
partidos que conquistaram vagas no turno precedente. Os candidatos mais
votados no segundo turno serão considerados eleitos.
A proposta tem vários problemas.
Não é simples. Todo sistema misto de voto, que obriga o eleitor a
votar duas vezes, perde o atributo desejável da simplicidade
(inteligibilidade).Reduz a liberdade de escolha do eleitor. A
prerrogativa que é concedida ao eleitor de votar em candidatos de sua
escolha no segundo turno propicia apenas liberdade parcial, já que os
candidatos foram definidos pelos partidos no primeiro turno. Concorre
pouco para o fortalecimento dos partidos e não evita sua fragmentação.
Louvada pelos seus proponentes como um sistema que fortalece os
partidos a proposta é incoerente neste aspecto porque admite as
coligações proporcionais.De fato, na sistemática atual os partidos
abrigados em alianças podem eleger representantes sem lograr atingir o
quociente eleitoral. Numa configuração sem coligações, somente partidos
que ultrapassam o quociente eleitoral ascendem ao Parlamento.O corolário
dessa restrição é cristalino: partidos de pouca expressão
numérico-eleitoral tendem a desaparecer, pois sua principal moeda de
troca – tempo de TV, aluguel de sigla e cauda eleitoral – não terá mais
valor no lucrativo mercado das eleições.Para sobreviverem, os partidos,
nessa situação, incluindo os “ideológicos”, serão compelidos a
fundir-se, diminuindo o número de siglas partidárias. Isso não ocorrerá
no projeto da OAB, posto que a entidade não contempla o fim das
coligações.Diminui o vínculo entre eleitor e parlamentar. Da feita que
as candidaturas são gestadas interna corporis, no âmbito do partido, a
atenção maior do parlamentar é com a instância partidária e menos com o
eleitor. Esse distanciamento provoca certo alheamento do eleitor às
atividades parlamentares do representante, que exerce seu mister sem
interação com o representado (quer dizer, há uma baixa
accountability).Há grande luta pelo poder dentro do partido,
oligarquização, e pouca renovação de quadros. Esta é uma característica
típica dos modelos de lista fechada. A cúpula partidária é quem decide
sobre os nomes da lista, o que enseja briga intestina pelos postos de
comando. Em geral, os caciques se perpetuam no poder e, é claro, nas
listas partidárias, cuja taxa de renovação é geralmente baixa.Não evita
que candidatos menos votados que outros sejam eleitos. Embora a proposta
da OAB seja uma adaptação do modelo majoritário-distrital misto, sua
estrutura conceptiva não impede de candidatos mais votados ficarem fora
do Parlamento (nos sistemas majoritários isso não acontece, os mais
votados são sempre os eleitos).
Com efeito, na variante da OAB os partidos ou coligações
apresentam a julgamento do eleitor, no segundo turno, o dobro de
candidaturas relativamente ao número de vagas conquistadas no turno
anterior. Pode ocorrer, por exemplo, de todos os candidatos de um
determinado partido terem sido os menos votados do pleito e, ainda
assim, o partido preencherá as vagas que lhe pertencem, conquistadas no
primeiro turno, deixando de fora candidatos mais votados de outros
partidos.
Sob este aspecto, a sugestão da OAB incorre no mesmo problema de
todos os modelos proporcionais: os mais votados não necessariamente são
os eleitos.
Tende a aumentar drasticamente a abstenção no segundo turno.
Definidas as vagas partidárias na primeira fase do pleito, os eleitores
de partidos e candidatos que não serão votados no segundo turno perdem o
estímulo de comparecer às urnas. Mesmo alguns dos eleitores de partidos
que ultrapassaram o quociente eleitoral no primeiro turno não se
sentirão incentivados a votar na etapa posterior: o jogo já foi jogado!
Não evita o problema de desproporcionalidade intracoligações. O
princípio ideal da proporcionalidade é aquele segundo o qual o número de
cadeiras conquistado pelos partidos deve ser o mais possível
proporcional aos votos recebidos.No sistema brasileiro atual há uma
nítida alteração da vontade do eleitor expressa nas urnas: a ocupação
das vagas parlamentares pelos partidos no interior das coligações não é
feita em consonância com a proporção dos votos por eles recebida. Isso
acarreta várias distorções ao sistema, entre as quais, como se diz
popularmente, a de se votar em “José” e se eleger “João”.Não evita o
aparecimento do puxador de votos. Um dos parceiros da OAB nessa proposta
de mudança de sistema de voto, o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção
Eleitoral), deu a seguinte justificativa no lançamento do projeto:
“De acordo com o MCCE, a mudança na forma de eleição dos
parlamentares visa tornar a eleição mais representativa e evitar que um
único candidato seja responsável pelas eleições de vários outros, como
aconteceu nas eleições passadas quando o palhaço Tiririca, concorrendo
pelo PR-SP, elegeu quatro parlamentares ao ter cerca de um milhão e
trezentos mil votos”. Jornal do Brasil, 24/06/2013.
A entidade está equivocada: a mudança proposta não evita o
transbordamento (spillover) de votos do puxador para candidatos do
partido ou coligação. Independente da votação de candidatos de outros
partidos, determinada sigla fica com as vagas ganhas no primeiro turno.
No preenchimento dessas vagas pode aparecer um campeão de votos e
arrastar consigo candidatos com votações ínfimas, tal e qual acontece
hoje no modelo de lista aberta.
Os proponentes do projeto da OAB o apresentam como “proporcional
misto”. Não existe isso. Os modelos eleitorais ou são majoritários ou
proporcionais. Os mistos são uma junção das duas modalidades, o que não é
o caso do projeto em tela.
A proposição da OAB é, na verdade, de uma espécie de modelo
proporcional de lista fechada flexível (os eleitores podem modificar a
posição dos nomes na lista), com a desnecessária complicação de dois
turnos.
Ao denominá-la de proporcional mista a OAB quis evitar a crítica
de estar apresentando uma sugestão de lista pré-ordenada, de grande
rejeição, o que dificultaria sua adesão popular e, certamente, o trâmite
no Congresso Nacional.
Enfim, não deixa de ser altamente louvável a iniciativa da OAB de
lançar-se às ruas com seu projeto de “eleições limpas”. Contudo, no que
diz respeito à sua propositura de sistema de voto, trata-se de mais uma
tentativa, entre inúmeras, de substituir o atual modelo proporcional de
lista aberta por qualquer outro, sob o falso pretexto de que o
mecanismo vigente é responsável pelas mazelas do sistema político
brasileiro.
E o que é pior: além de preservar, e até mesmo ampliar, os
deméritos dos mecanismos sobre os quais se erige, o modelo da OAB não
apresenta nenhuma grande vantagem que justifique implantá-lo em
substituição ao sistema em uso no país há 68 anos.
Muito melhor faria a respeitada entidade esquecer esses delírios
reformistas e jogar o peso de seu prestígio no aperfeiçoamento do modelo
proporcional atual, apoiando mudanças importantes que já foram assim
consideradas, sem prejuízo, naturalmente, de sugerir outras alterações
que lhe imprimam adicionais melhorias qualitativas.
do Blog de Inaldo Sampaio
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